Categoria: Infância

  • E quanto eu aumentei a dor?

    E quanto eu aumentei a dor?

    Ouvi essa pergunta pela primeira vez dentro da minha cabeça, num trajeto aparentemente banal entre minha casa e a cidade da minha mãe. Eu estava ouvindo um audiobook, distraído, com a paisagem escorrendo pela janela e os pensamentos soltos feito fumaça. Foi quando uma frase me pegou desprevenido:

    “Foque no processo. A meta será consequência.”


    Soou simples. Direta. Quase boba, até. Mas bateu com força. E, na hora, alguma coisa acendeu dentro de mim. Será que eu estava procurando libertação no lugar errado?
    Vamos ao meu caso.

    Depois de anos de terapia, leitura, espiritualidade, conversas profundas, caminhadas solitárias, eu acreditava que estava no caminho certo. Tentava, de todas as formas, deixar no passado os apelidos, as risadas maldosas, os empurrões — tudo o que marcou minha infância por conta do meu jeito afeminado. Eu queria, sinceramente, me libertar daquilo. Mas não conseguia. A sensação era de estar amarrado com cordas que eu mesmo não via, e quanto mais eu puxava, mais elas me prendiam.
    Mas por quê?

    Eu estava fazendo tudo que mandava o figurino. Comparecia à terapia. Buscava apoio. Praticava minha espiritualidade. Lia sobre o tema. Conversava. Refletia.
    Ainda assim, parecia que algo não virava. Como se eu estivesse num daqueles sonhos em que a gente corre, corre… e não sai do lugar.

    Foi então que comecei a me perguntar: será que eu me apaixonei pela ideia da cura, mas ignorei o processo da cicatrização?
    Talvez sim.

    Fiquei anos repetindo o quanto sofri, o quanto chorei, o quanto fui ferido. E é verdade, tudo isso aconteceu. Mas percebi que transformei a dor em identidade. Fiz dela um escudo. Um lugar de fala. Um idioma íntimo. Eu dizia que estava melhorando, mas alimentava os fantasmas todos os dias — com a mesma mão que tentava expulsá-los.

    Num dia qualquer, de chuva breve e um solzinho simpático, decidi parar de fugir e voltar lá. Dei 30 minutos ao meu corpo e à minha mente, e viajei — não pela estrada dessa vez, mas pela memória. Voltei para 1992, ano em que eu tinha sete anos, e as lembranças começaram a se organizar feito fotografias num varal.

    Lembro dos nomes: o inteligente Erik, a popular Maria Eduarda, o sapeca Gilson, a tímida Pâmela… e minha irmã Elilde, claro. A professora era a tia Elizabeth. Dali, tenho duas lembranças fortes: meninos me chamando de “mulherzinha” e um deles apertando meu pescoço com as duas mãos, firme, por alguns segundos. E só.

    As outras séries também não foram fáceis. Mas, olhando agora, com honestidade, não foram um pesadelo completo. A violência física parou ali. O preconceito seguiu, é verdade — às vezes com apelidos esporádicos, outras com silêncios desconfortáveis. Mas, no meio disso tudo, também houve tentativas de proteção, amizades sinceras e muitos momentos bons.

    E aí vem o ponto difícil de admitir: eu aumentei a minha dor.
    Não porque eu quis exagerar. Mas porque eu dei a ela mais espaço do que ela merecia. Transformei episódios dolorosos — e reais — em monstros maiores do que eram. Imortalizei feridas que já tinham fechado. Fiz da exceção a regra.

    E mais: me esqueci de sorrir nas lembranças. De reconhecer que, mesmo ali, no olho do furacão, eu fui feliz. Sorri mais do que chorei. Fui mais acolhido do que zombado. Só que a dor… a dor tem um poder esquisito de cobrir tudo como uma névoa. A gente só vê o que ela permite.

    Hoje, quando volto a me fazer a pergunta — “Será que eu entendo o processo?” — a resposta não é simples. Ainda não compreendo tudo. Mas sei, ao menos, para onde direcionar minha energia.

    Ser uma criança afeminada na década de 90 não era fácil. Ainda mais em lugares onde masculinidade era sinônimo de força, dureza, silêncio.

    Mas eu sobrevivi. E, mais que isso, eu continuei. Aquela criança de sete anos não revidava. Não sabia como se defender. Mas ela chorava, se acolhia, e repetia baixinho, como quem sussurra um mantra: “Eu não tenho culpa de ser quem eu sou.”

    E isso, talvez, seja o início de tudo.


    A meta? Pode vir depois. Ou talvez nem importe tanto mais. Porque, enfim, eu comecei o processo.

    Um homem caminhando por um caminho florido, olhando para trás para uma figura sombria que emerge de um túnel de nuvens escuras.

    Emeneses