Categoria: Juventude

  • Sete da manhã no Recife Antigo

    Sete da manhã no Recife Antigo

    Entre medalhas, cicatrizes e um menino franzino que ainda corre comigo

    O sol já brincava no céu quando cruzei a Praça do Arsenal, correndo para o encontro de um sonho: o final da minha primeira meia-maratona.

    O Rio Capibaribe espelhava uma manhã azul, e a vida parecia perfeita, até a notícia de que meu carro havia sido arrombado. Em meio à euforia de ter vencido meus primeiros 21 quilômetros, uma sombra antiga se acendeu. A mente, traiçoeira, me levou de volta a Barreiros e, sem pedir licença, me fez revisitar as feridas de um menino franzino, que ainda estavam ali, esperando por um tempo bom para cicatrizar.


    O menino de Barreiros

    Foi na quinta série, num tempo em que a vida se resumia a futebol para os meninos e queimado para as meninas, que fui “convidado” para o time de atletismo.

    Um convite por compaixão, porque eu não me encaixava em lugar nenhum. Magrinho, sedentário, um corpo que parecia feito de sopro. O professor João me inscreveu na prova de 400 metros.
    “Uma volta no campo? Posso fazer isso”, pensei. Minha ingenuidade era o único músculo forte que eu tinha.

    Não houve treino. Apenas a instrução de “dar umas carreiras” na rua. Minha ansiedade roía as unhas, e eu só tinha um tênis apertado, mas a esperança de conseguir os pontos me fazia caminhar para a batalha.

    O tiro de largada soou. Corri com a coragem de um herói de gibi, mas a 100 metros a gravidade me puxou para o chão. O ar fugiu, as pernas bambearam, e eu caí.

    E os outros correram.

    Fui me arrastando entre risos e vaias, a vergonha me queimando como um sol de meio-dia. “Mulherzinha”, “coitadinho”. As vozes eram facas afiadas que cortavam a pele invisível da minha alma.


    Feridas que pedem tempo

    Eu era um menino delicado em uma escola que idolatrava homens fortes. Minha natureza era um crime. A dor mais profunda que eu guardava era a de não ser aceito pelo que eu era.

    Como ensinou o monge Haemin Sunim:
    “Eu queria que pudessem ver minha verdadeira natureza. Para além dos estereótipos, há um vale de franqueza e autenticidade.”

    Ele também me mostrou que uma ferida não se cura arrancando a casca. É preciso tempo — como a frigideira com gordura incrustada que só solta com água e paciência. Foi o que fiz: depositei a água da esperança, sem saber, e esperei.


    O renascimento pela corrida

    Aos 22 anos, me preparando para um concurso, tive que voltar a correr. A cada 50 metros, as vozes de Barreiros ecoavam, mas eu continuava.

    Aos poucos, os gritos viraram sussurros.
    Os sussurros, silêncio.

    Ganhei músculos, ganhei medalhas, mas o mais importante: ganhei a mim mesmo de volta.

    Abracei o menino magoado de Barreiros, com seu tênis apertado e suas perninhas finas. E enquanto eu cruzava a Praça do Arsenal naquela meia-maratona, a mágoa escorria, leve como a água que um dia amoleceu a gordura, e o sol daquele dia claro, finalmente, pôde brilhar de verdade.


    Epílogo: uma olhada no espelho

    Anos se passaram desde aquela manhã no Recife Antigo.

    Hoje, em uma manhã qualquer, ao amarrar meus tênis antes de um treino, parei diante do espelho. Não era mais o menino franzino, nem o jovem que corria para ser policial. Era um homem de músculos, de cicatrizes que se tornaram desenhos.

    O menino que desmoronou nos 400 metros ainda vive em mim, mas agora ele corre ao meu lado. Em vez de risos e vaias, ele me oferece um sorriso de cumplicidade.

    A corrida não é mais uma fuga, mas um abraço.
    E a cada passo, sinto o eco daquele “coitadinho” se transformando no grito silencioso de um vencedor.