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  • O que não cabe à mesa

    O que não cabe à mesa

    Dizem que o lugar mais sagrado de uma casa é a mesa de jantar. É ali que se reparte o pão e, mais do que isso, se reparte a vida. As alegrias viram brindes, as preocupações viram pauta. Na minha família, e na do meu amigo Breno, a mesa é farta. Mas nem todos os amores são convidados para o banquete.


    ​Breno, amigo cuja alma conheço melhor que as minhas próprias gavetas, me chama no WhatsApp. A voz dele, que no trabalho comanda e decide, no telefone se desfaz em um fiapo de inquietação. O assunto, como quase sempre, era a vida alheia — que ele chama de fofoca e eu, para me sentir mais nobre, chamo de análise.


    ​O irmão dele, já homem feito de mais de quarenta anos, arranjou uma namorada. E a moça, veja bem, não era do tipo que agrada às mães. Não tinha o cheiro de bolo de fubá, nem o sorriso manso de quem nasceu para o lar. Era mulher de fotos em redes sociais, de vida própria, de gostos que a família chamava de “duvidosos”. Uma ameaça. E por ser uma ameaça, ela existia. Virou o prato principal de todos os jantares. Era comentada, analisada, julgada. A família se preocupava. E preocupação, ainda que torta, é uma forma de amor, um jeito de dizer: “você importa”.


    ​Enquanto eu ouvia os áudios longos de Breno, me deliciava com o drama, mas uma fome estranha me roía por dentro. Uma fome de ausência. Pois, na contramão de toda aquela barulheira familiar, Breno era o silêncio. Um silêncio que doía.


    ​Ninguém na mesa perguntava por ele. Não havia um “E você, meu filho? Tem amado alguém?”. O amor dele era um prato que a tradição prefere não servir. Um cômodo da casa que todos sabem que existe, mas cuja porta se mantém trancada. Breno e eu partilhávamos do mesmo feitiço: o da invisibilidade afetiva. O amor que sentíamos, por ser por outros homens, não gerava preocupação, nem fofoca, nem análise. Não gerava nada. Era o vazio.


    ​É curioso. A ausência de julgamento, que deveria ser um alívio, às vezes se parece com o abandono. Para não sermos apedrejados, nos tornaram fantasmas. E um fantasma não precisa de lugar à mesa.
    ​No fundo, acho que o que a gente queria não era aprovação. Seria pedir demais. O que a alma pedia era algo mais simples: ser notada. Um simples “e o seu coração, como vai?” já alimentaria a gente por uma semana. O direito de ter um amor que pudesse ser, ao menos, uma nota de rodapé nas conversas de domingo.


    ​Já foi pior, eu sei. Hoje, a gente até pode levar nosso amor para o churrasco, desde que ele se comporte como um primo distante, sem abraços demorados ou olhares que entreguem o segredo. “Está tudo bem”, eles dizem com os olhos, “desde que eu não precise ver”.


    ​Breno é um pilar na empresa da família. Pulso firme, cabeça boa. Inteiro. Mas na mesa do afeto, só lhe servem a metade.
    ​Outro dia, depois das minhas análises de psicólogo amador, perguntei a ele se toda essa dinâmica lhe era clara, se o silêncio não o ensurdecia. Para minha surpresa, ele deu de ombros. Disse que já nem se importava.


    ​Talvez essa seja a muralha que a gente constrói. A força que fingimos ter. Mas, por dentro, essa fortaleza é feita de um material frágil, quase transparente. Por fora, somos homens que não precisam exibir seus amores. Por dentro, somos meninos que ainda sentem o peso de nunca serem lembrados. E essa, sabe?, é uma fome que nenhum banquete consegue saciar.