O que você levaria nas mãos se sua casa precisasse ser abandonada às pressas?
No Teatro de Santa Isabel, na capital pernambucana, a peça estrelada por Denise Fraga e Tony Ramos — O que só sabemos juntos — reacendeu em mim a chama da curiosidade sobre o que realmente importa. Além do show de interpretação, um dos atos lançou a pergunta que me faria recuar no tempo.
O que eu levaria? Não fui capaz de responder de imediato.
Confesso: as respostas da plateia me assustaram. “Eu levaria minha mulher!”, gritou um homem, rebaixando a esposa à condição de objeto. Outro respondeu que pegaria a geladeira, como se coubesse nas mãos. Mas eu entendi a provocação dos atores: o que é tão fundamental a ponto de ser a única coisa salva?
A peça foi prazerosa, mas abriu comportas antigas: memórias de momentos dolorosos, como a enchente que assolou Barreiros no ano 2000.
Aos meus quinze anos, e após uma semana de chuvas intensas, a Zona da Mata Sul de Pernambuco entrou em alerta. Barreiros, cortada pelos rios Una e Carimã, estava prestes a ser açoitada. Uma das piores calamidades da história da cidade não veio silenciosa, tal qual a madrugada no oceano — veio sorrateira. Em poucas horas, a enchente tomou proporções de dilúvio, dando a muitos apenas a chance de levar consigo a vida. E a incerteza.
O Condomínio São Francisco, um aglomerado de casebres de três cômodos, foi palco de um dos maiores traumas da minha adolescência. A casinha de número 11 carecia de luz solar, mas transbordava gratidão. Ali, minha família e eu retomamos a dignidade que nos fora privada. Era um lar. Um retrato da pobreza, mas também da resiliência.
“Havia uma razão para tudo”, dizia minha mãe. “Aceitar a carência é melhor que se rebelar.”
Nunca concordei. Para mim, rebelar-se era sinônimo de não esquecer, de lutar para manter um registro — uma prova de que existimos para além da falta.
Na tarde fatídica, a vizinhança entrou em frenesi. Móveis velhos eram despachados em carroças, caminhões, bicicletas. Minha mãe, Dona Maria, continuava a trabalhar. O mundo lá fora gritava:
“As águas do rio estão subindo!”
“Já cobriu a ponte da Rua da Cigana!”
“Vai chegar na Igreja Matriz!”
Guardei cada frase. Elas ecoaram na minha cabeça e, no fundo, ainda ecoam — talvez sejam meu guia para pressentir tragédias.
Mas e nós? A família do 11? Para onde iríamos? O que levaríamos?
Num último ato, fui até a esquina. Era verdade. A água barrenta, como um exército em marcha, não pedia licença: avançava. Por ironia, o sol resolveu aparecer, despedindo-se num aceno discreto que anunciava o anoitecer assombroso.
Entrei na casa úmida para colocar roupas em sacos plásticos, os cadernos, alguns livros e o gato, Mimo. A pressa e a água não nos deixaram demorar.
Os quase dois metros de inundação afogaram mais que objetos: afogaram lembranças. As fotografias, tiradas por câmeras de filme e reveladas com tanta expectativa, foram-se. Os poucos registros da infância — a formatura do ABC, as imagens de uma época — perderam-se para nunca mais voltar.
Eu queria saber como eu era. Fisicamente. As imagens do passado… talvez nem a memória seja fiel. Tenho um borrão do que fui.
Naquele dia, a filosofia da minha mãe venceu. Sem perceber, aceitei a perda sem me rebelar, salvando o que era vivo em detrimento do que já tinha sido. Eu nem liguei para o caos da lama ou para os móveis surrados.
Eu só queria ter levado as fotografias reveladas.
Mas parece que elas não eram importantes.
