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  • ​O Perigoso Crime de Denise​

    ​O Perigoso Crime de Denise​


    ​“A diretora da escola já teve uma conversa com ela. Eu mesma não sei como Denise pode ser capaz de uma coisa dessas.”
    ​Há sentenças que, de tão banais, se tornam iscas. Flutuam no ar morno da tarde e fisgam a alma de um cronista. Foi o que aconteceu. A frase, lançada ao telefone com a gravidade de quem anuncia um diagnóstico de doença terminal, obrigou-me a interromper a marcha. Rock, meu shar-pei de alma antiga e paciência curta, olhou-me como quem diz: “De novo, humano?”. Sim, de novo. Sentei-me no primeiro banco que encontrei no calçadão de Piedade, assumindo minha postura de espionagem amadora: corpo para o mar, ouvidos para a senhora a postos atrás de mim.


    ​A dona da voz, uma mulher de saia bem passada e convicções ainda mais engomadas, continuava seu relatório para um parente invisível. O réu? Uma menina chamada Denise. Seu crime? Hediondo, pelo tom da acusação. Imaginei um delito grave, algo que abalaria as estruturas da moral e dos bons costumes. Mas o pecado de Denise era muito mais sutil e, para os olhos daquela senhora, talvez mais perigoso: Denise lia. Pior: lia o que não devia.
    ​O corpo de delito era um livro, presente de uma prima ou achado fortuito — a versão da acusada mudava, como costuma acontecer sob interrogatório. A menina, recolhida em casa pelas dores inaugurais das regras femininas, trocou o repouso aprovado pela aventura proibida das páginas. O conteúdo, segundo a fiscal da vida alheia, era “muito forte”.


    ​Ah, as coisas “fortes”. Rubem Alves, que me perdoe a intimidade de citá-lo em pensamento, dizia que ostras são para os que têm coragem. Talvez livros sejam como ostras: alguns exigem um paladar que ainda não se tem. Mas proibir a ostra não ensina ninguém a saboreá-la. Apenas alimenta o medo do mar. E ali estava aquela senhora, com sua fé inabalável, transformando um livro num monstro marinho e uma menina curiosa numa transgressora.


    ​Não pude evitar um sorriso irônico, que escondi virando o rosto para a brisa. Em 1993, numa Barreiros que já não existe, cometi o mesmo crime. Meu fruto proibido chamava-se “Júlia”, um desses livretos de bolso pendurados em bancas de jornal como iscas para mentes sonhadoras. Era erótico, sim, mas não vulgar. Era um sussurro sobre um mundo que os adultos viviam, mas do qual se recusavam a falar. Não fui pego em flagrante, mas o livro, tal qual um dissidente político, desapareceu misteriosamente da minha gaveta. Os censores domésticos agiram com eficiência. Mas era tarde. A semente da curiosidade já havia sido plantada no meu espírito de menino. Aquelas páginas não me corromperam; elas me ensinaram que havia mais perguntas do que respostas, e que as melhores histórias moravam no silêncio dos mais velhos.


    ​Lembrei-me do curta-metragem “Meu Amigo Nietzsche”. Um menino, numa cidade pobre, encontra um livro do filósofo e começa a questionar o mundo. É perseguido por isso. O garoto do filme, Denise e eu formamos uma trindade de pequenos criminosos. Nosso delito foi o mesmo: a fome. Fome de saber, de sentir, de espiar para além do muro. E o que fazem os bons guardiões quando uma criança tem fome? Oferecem pão. Mas a diretora da escola de Denise, essa gestora de almas em formação, tinha outra receita: a detenção.


    ​Que ironia monumental. Detenção por ler. Numa época em que as livrarias fecham as portas e a capacidade de concentração de um jovem dura menos que um vídeo no Tik Tok, uma menina que se aventura por um livro inteiro é tratada como delinquente. A diretora queria trancá-la numa sala como punição. Por quê? Porque a leitura de Denise não estava na cartilha, não era a lição de casa aprovada, não vinha com o selo do MEC. Era uma leitura selvagem, livre, perigosa. Era pensamento. E pensamento, como bem sabemos, dá um trabalho danado.


    ​Eu queria o endereço daquela educadora. Não para um confronto, mas para um chá. Eu lhe perguntaria, com a calma de um oficial em alto-mar: “Senhora diretora, se uma planta rara e inesperada brota em seu jardim, a senhora a arranca com raiva ou se ajoelha para entender que milagre é aquele?”. Uma menina que busca um livro “forte” não é um problema, é um pedido de ajuda. É uma alma dizendo: “O mundo que vocês me oferecem é pequeno demais. Eu preciso de mais”. Por que, em vez de castrar essa curiosidade, não se oferece um intercâmbio? “Denise, que livro fascinante você achou! A história é forte, não é? Venha, vamos conversar sobre ela. E depois, que tal lermos este outro aqui, que talvez lhe prepare melhor para essas emoções?”
    ​Isso é educar. O resto é adestramento.


    ​Enquanto a senhora ao telefone continuava a desfiar sua indignação, olhei para o horizonte. Aqui em Pernambuco, não faz muito tempo, uma menina de 11 anos morreu espancada por se recusar a beijar um colega. Isso é forte. A ignorância que gera a violência, isso sim é conteúdo impróprio para menores. A falta de leitura que cria monstros, essa é a verdadeira transgressão. Denise, com seu livro clandestino, estava infinitamente mais segura e mais perto da humanidade do que os que a condenavam.


    ​A revolução de Denise não precisa de armas; ela já começou, silenciosa, no instante em que ela aprendeu que as letras formam mundos. E não haverá diretora ou parente indignado que possa detê-la. O prazer foi descoberto. Agora, ela lerá tudo: bulas de remédio, revistas velhas em consultórios, propagandas na carroceria dos ônibus. O proibido não foi um fim, foi a ignição. Eles pensam que estão punindo um erro, quando, na verdade, estão testemunhando um nascimento: o de uma leitora.
    ​A noite começou a cair, tingindo o mar de Piedade com tons de chumbo. A mulher desligou o telefone e se foi, levando consigo suas certezas. Levantei-me, e Rock me apressou com a coleira. Fui embora carregando na memória a história de uma menina que nunca conheci, sentindo a impotência de quem apenas escuta.


    Mas, de onde eu estava, enviei meu pensamento através da cidade.


    ​Coragem, Denise. Onde quer que você esteja, continue seu delicioso crime. O mundo precisa de mais infratoras como você.